sexta-feira, 31 de maio de 2013

Nosso pequeno Erik corajoso.

O início da cura

Hoje os maqueiros me acordaram cedo. O Erik seria o primeiro no centro cirúrgico, pois eles fazem a fila por ordem de idade, os menores em jejum vão na frente. Ele pediu água pela manhã, pediu papá... Não pude dar. Fomos para o 9o. andar, esperar a sala ficar pronta... Ele se irrita muito de me ver de toca! Quer tirar... "o péu, mamãe!". Péu é chapéu, claro. Ele tem uma língua particular, ainda articulando novas palavras a cada dia. Quantas palavras novas ele vai aprender aqui no hospital? Não era bem o que eu tinha sonhado para ele. Queria que aprendesse a dizer "borboleta", "cachorro", "sol", "jardim" e não "quimioterapia". Fomos chamados para a sala de cirurgia, e eles injetaram o remedinho... Odeio vê-lo "apagar" na anestesia. Odeio. Fui empurrada carinhosamente para fora pela enfermeira... Droga, droga, droga. Fico nervosa. O procedimento foi rápido e simples: punção lombar, quimioterapia intratecal (na coluna), profilática do Sistema Nervoso Central. Aproveitaram a anestesia para recolocar a sonda nasogástrica que ele, incomodado, havia arrancado no meio da madrugada. Em seguida foi para a sala de recuperação, ainda dormindo, pálido que só. Conversei com as enfermeiras... rotina de hospital. Perguntei muito sobre como se daria um transplante de medula, como funciona para fazer a doação...

Em seguida minha colega de quarto entrou com o filho na sala de recuperaçÃo, que foi fazer o mesmo. Ele está perdendo os cabelos. Entrou no INCA aos 2 anos, como o Erik, a mesma doença, sem a complicação de ser bifenotípica. Agora tem cinco anos, está de volta com sua primeira reincidência. A mãe está grávida de 3 meses, não quer casar com o pai da criança: "Olha bem prá minha carinha e me diz se eu tenho cara de quem lava cueca de homem", troça. É bem humorada e engraçada, mas hoje estava quieta, amuada e chorosa. Ontem o menino estava perdendo o cabelo por causa da quimio. Ela resolveu cortar, e ele chorou que deu dó.

O Edson esteve aqui à tarde. O Erik chama muito por ele, fica feliz quando ele vem. Foi quando consegui dar um pouquinho de sopa para ele. Aproveitei que ele estava aqui e fui ao 7o andar me informar sobre a doação de medula óssea. Somente a Elena poderá fazer a tipagem para doar a medula diretamente para o irmão. Quem mais quiser doar terá que entrar para o banco geral. É muito importante, pois se houver compatibilidade, é muito provável que o Erik seja beneficiado, mas se não for por ele, façam por todas as crianças que estão aqui, esperando um doador compatível. A tipagem é bastante simples, basta colher um pouco de sangue. Se houver compatibilidade, o doador é chamado para fazer mais exames, e se tudo se confirmar, é um dia de internação, com anestesia, para coleta de sangue diretamente da medula. Vale muito a pena e pode salvar muitas vidas. Quem puder, vá para um hemocentro fazer isso!!! A doação de sangue e plaquetas também é muiiiiito importante. Publiquei no Face mais informações, mas quem quiser pode visitar o site www.inca.gov.br que lá diz tudo.

À tarde veio o atendimento espiritual, conversei com dois voluntários, rezamos juntos pelo Erik, contei a história da família para eles. A senhora me abraçou e chorou comigo, disse que vai me trazer Água de Lourdes. Ótimo, Maria de Lourdes, minha vozinha, deve estar no céu olhando por nós...

O Erik passou a tarde dormitando... não quis comer. O total da sua dieta de hoje foi: 4 colheres de sopa de abóbora, 1 iogurte e 4 rodelinhas de banana. Não tomou água, nem mamá. Está visivelmente mais magro, pálido e com olheiras. A sonda foi recolocada e às 11h estávamos de volta ao quarto. Fiquei esperando que colocassem o preparado na sonda até... 21h. A dose do meio-dia não apareceu, mas achei que era cedo mesmo, visto que ele recém tinha saído da anestesia. Mas a dose das 16h não veio, daí questionei a enfermeira. Ela disse que o médico não havia dado o visto de que a sonda havia sido bem posicionada, o que poderia ser comprovado pelo raio x. Correram para pegar a assinatura do médico de emergência e me garantiram que a dose das 20h viria. Mas eram 21h e nada! Fiquei braba. Saí do quarto e fui atrás da enfermeira. "Mas não pode ficar tudo nas nossas costas", ela disse. "Ok, então me diga quem é o responsável para eu ir atrás!", pedi. Ela me indicou onde ficaria a sala da nutricionista. Claro que, neste horário, ela não estava mais lá, apenas uma funcionária que entrega os lanches. Pedi para falar com a pessoa responsável pelo setor. Ela foi chamar, noutro andar. Quando a pessoa chegou com a prancheta, disse que não estava previsto na sua programação... "Bom, mas o bebê está em jejum há quase 24h! Amanhã começa a quimio! Quem é que vai se responsabilizar por isso?! Resolvam, busquem a dieta, a autorização ou o que for", me indignei. Ela foi atrás da dieta. Voltei ao posto de enfermagem rangendo os dentes de raiva. Nestas horas ninguém é responsável... Perguntei: "Ok, quer dizer que é minha a responsabilidade? Tudo bem, vcs só precisam me dizer que eu corro atrás todos os dias!". "Não, senhora, a senhora não é responsável!". Nisso chegou a dieta. "Bom, vamos logo com isso então, a criança precisa comer, tchê!" Fiquei pilhada. Meu Deus, vou ter que ficar em cima desta gente, se não os erros simplesmente acontecem em escala e ninguém toma a responsabilidade para si! Já me subiu a gaúcha, faca na bota, o sotaque ficou forte e soltei meus tchês todos. Não quero me indispor com ninguém, mas também não vou ficar sendo passiva e boazinha com o bebê sem comer há quase 24 horas nas vésperas de começar o tratamento...

Depois, no quarto, pedi desculpas à enfermeira, que me abraçou e disse para eu ficar calma, que elas estão aqui para ajudar, para fazer dar certo. "Vamos nos ajudar todos, contem comigo sempre, mas não vamos deixar os problemas acontecerem e não dar solução... se quiserem que eu vá atrás para resolver alguma coisa, é só me falar!". Ficou tudo bem no final... Ele agora já está na segunda dose... Poderia estar na 4a, mas bola prá frente.

Amanhã começa a quimio. Estou nervosa. Ele tem que reagir bem, vai reagir. Sei dos efeitos colaterais, sei que vai ser difícil. Cada efeito colateral é conseqüência dos remédios, e os remédios são a cura. E a cura começou hoje.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Da Coragem

Para ter coragem, é preciso ter medo, visto que coragem é a capacidade de enfrentar o medo, e prosseguir apesar dele. Bom, hoje encerra-se a primeira semana de internação do nosso pequeno Erik, de 1 ano e 8 meses, no Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro. Decidi escrever, um pouco porque escrever sempre me deu coragem para enfrentar o medo, um pouco porque talvez compartilhar nossa história ajude alguém, de algum modo, a encarar de frente os desafios que lhe forem apresentados.

Foi uma semana intensa. Na quinta-feira da semana passada chegamos aqui, eu, Edson, minha mãe e nosso bebê, com um laudo assustador de Linfoma Linfoblástico B, resultado de uma biópsia realizada na tíbia proximal direita - uma tíbia de poucos centímetros ainda. Com a perninha enfaixada e bastante desconfiado, ele olhava tudo com seus olhinhos arregalados.

Em fevereiro estávamos em Porto Alegre e percebemos que ele estava mancando. Uma brincadeira mais violenta com o primo poderia tê-lo machucado? Será que era do crescimento? Algum bicho mordeu na perna? Tem alguma felpa no pé? Não sabíamos. Voltamos para o Rio dia 05 de março, já com consulta marcada no pediatra. Depois de um exame atento, ele disse que acreditava ser uma "Sinuvite Transitória de Quadril", virose comum nesta faixa etária que inflama o líquido sinuvial do quadril, benigna e que, em uma semana ou duas teria sarado sem deixar seqüelas. Por via das dúvidas, ele nos deixou uma requisição de raio X do quadril direito, para o caso de não passarem os sintomas no prazo previsto. Bom, os sintomas passaram. Ou achamos que tinham passado. Afinal, ele tinha aprendido a andar poucos meses antes, e pode ser que ele tenha simplesmente se adaptado a dor inicial e arranjado um jeitinho próprio de andar. Cambotinha, diziam os amigos. Sim, mas isso é normal nesta idade, passa após os dois anos, diziam os médicos com quem conversávamos e todas as minhas pesquisas na Internet.

Um relato prévio, para que se entenda como chegamos aqui:

No final de abril, pelo dia 26 ou 27, achamos que ele voltou a mancar. Era 5a. feira. "Bom, semana que vem vou fazer o tal raio x, então!", pensei. Na 6a. ficou mais evidente. Sábado ele não queria colocar o pé no chão e choramingava. No domingo decidi levá-lo na emergência do hospital Rio's Dor. O ortopedista de plantão examinou, confirmou que ele estava com dor, pediu um raio x de quadril e... nada apareceu de relevante. Ele acreditou que fosse uma reincidência da Sinuvite Transitória de Quadril. Nos mandou para casa, com Alivium, para esperar passar novamente.

Passou-se a 2a. feira, e liguei para o pediatra dele, Dr. Marcus Renato, explicando o que havia acontecido. Ele sugeriu que procurássemos um ortopedista, nos deu o nome do Dr. Fernando Furst ou do seu filho, Daniel Furst. Liguei, mas com o Dr. Fernando, só para agosto, e com o Dr. Daniel, só tinha consulta disponível para o dia 09/05. Deixei marcado. Veio a 3a... nada de melhorar, apesar do Alivium. Ele ficou quietinho em casa, assistindo desenho no sofá. Quarta-feira era 01/05, feriado, e levamos a Elena, nossa filhinha de 4 anos, e o Erik, para um piquenique com os coleguinhas da creche que ela frequentava. O Erik não saiu do meu colo, choramingando. Comecei a ficar ansiosa, querendo sair correndo com ele para o hospital novamente. Ficou tarde, e decidimos no dia seguinte ligar para o pediatra mais uma vez.

O tempo previsto para a Sinuvite já tinha se esgotado. O pediatra disse que então deveríamos de fato levá-lo mais uma vez na emergência, pois ele precisaria fazer uma ultrassonografia e não adiantava irmos ao consultório... Fui correndo, com ele já bastante abatido. Cheguei no Barra Shopping, que tem um centro médico com emergência pediátrica com ele com febre de 38.4oC. A médica que o viu jogou a primeira bomba: "Pode ser Artite Séptica. Não temos ultrassonografista pediátrico de plantão, é melhor você levá-lo imediatamente para o Rio's Dor e talvez ele fique internado. Não espere, vá direto, nem vá em casa", foi a recomendação. Parti imediatamente para o hospital.

Fiquei 24h na emergência. Faltam leitos de pediatria no Rio. Estamos com 4 emergências pediátricas a menos na cidade, fechadas. Fizemos Raio X, Ultrassonografia, Novos raios X, desta vez comparando as duas pernas. Colhemos exames de sangue. Sem diagnóstico. Pediram para interná-lo - não podiam liberá-lo com dor e febre e sem um diagnóstico. O chefe da ortopedia veio vê-lo. Descartou artrite séptica de quadril, pois ele mantinha preservada a mobilidade.

Próximas hipóteses: Osteomielite ou Tumor. Comecei a ficar com medo... Pediram uma ressonância na 6a. feira à noite. Mas não tem ressonância no Rio's Dor, então eles precisaram pedir autorização para o plano para a ressonância em outro hospital, com anestesia geral e transporte de ambulância. O plano não autoriza ressonâncias no final de semana, portanto ficamos até a 2a. feira aguardando para que a marcação começasse... e o Erik tomando alivium... Na 2a. feira, tentaram marcar para 6a. Começamos a acionar nossos contatos para tentar antecipar esse prazo. A Danielle, minha cunhada, havia trabalhado na Amil como advogada e ainda era amiga do pessoal por lá. Conseguimos pressionar o plano para que a autorização saísse. Antecipamos a ressonância para 4a. feira, no Hospital Pasteur. A essas alturas, estava não apenas com medo, mas em pânico...

Explico:

Temos 11 casos diretos de câncer na família do Erik, somando o meu lado e o do pai dele. Neste momento, minha mãe trata um tumor da hipófise, partindo para a 4a. cirurgia... E, também neste momento, meu sobrinho, Gabriel, trata um Sarcoma de Ewing. Parecia impossível que enfrentaríamos mais um caso simultâneo! O Edson, pai do Erik, teve câncer de tireóide há apenas 3 anos. Ainda está no controle. Sua mãe, avó do Edson, Beatriz, faleceu há exatos 1 ano e 8 meses - sim, na mesma semana em que o Erik nasceu - de câncer das vias biliares... Minha avó e meu tio materno tiveram cânceres ósseos. A avó paterna do Edson e seu tio materno faleceram de câncer. Tive uma tia avó com câncer de mama, entre outros casos pouco esclarecidos na família. Era demais para a minha cabeça.

Decidi chamar um ortopedista particular no hospital, para capitanear o caso. Liguei para o ortopedista com quem tinha marcado a consulta para o dia 09/05. Ele também foi muito bem recomendado no hospital em que estávamos. Liguei na 3a, 07/05, às 10h, e ao meio-dia ele já havia ligado para o hospital e estava por dentro do caso e de posse do resultado dos exames. Às 15h ele estava no quarto, examinando o Erik e dando sua opinião: lhe parecia uma osteomielite subaguda, mas precisaria, além da ressonância já marcada para o dia seguinte, de uma biópsia. E foi taxativo: não podíamos esperar, deveríamos marcá-la já para o dia seguinte ao da ressonância, 5a. feira. Osteomielite significava 6 semanas de hospital, com antibiótico venoso. Uma droga, mas sem seqüelas, então... fiquei de certa forma aliviada.

Fazer a ressonância não foi fácil. Ele teve que ser anestesiado pela primeira vez, o que me partiu o coração... Fomos transportados de ambulância para o Hospital Pasteur. O anestesista me deu a previsão de 1h20min para o procedimento. Demorou mais de 3 horas. Desesperada, do lado de fora, encostei a cabeça no marco da porta e rezei. Rezei 9 Aves Maria e 3 Pais Nosso, pedindo qualquer sinal divino que me dissesse que tudo corria bem do outro lado daquela porta chumbada... um anjo, que viesse me dizer que tudo estava bem... Uma senhora da empresa de limpeza do hospital me viu e me tocou o ombro, dizendo "Filha, tu estás muito nervosa, saia de frente desta porta, a radiação não faz bem... senta aqui... vou buscar uma água prá você... prefere normal ou gelada? Misturadinha? Já trago!"... Ela voltou com o copo de água e ficou mais de 40 minutos comigo, esperando que a Ressonância acabasse... olhei seu crachá: seu nome era Ângela! Ela olhou para mim e disse "Filha, eu vou te falar sobre milagre... há dois anos atrás, eu me separei no interior e vim morar no Rio com a minha filha... meu marido me traiu com uma prostituta e eu resolvi acabar com o casamento, começar tudo de novo. Quando cheguei aqui, logo consegui esse emprego... tinha a opção de ir trabalhar no comércio, ou na limpeza do hospital. Preferi trabalhar no hospital... Mas começaram a aparecer umas manchas estranhas no meu corpo. Fui ao médico, fiz exames, e meu mundo caiu: eu era soropositiva. AIDS. Chorei demais, achei que não valia a pena viver com isso. Fiquei forte, tive que consolar minha filha, que ficou ainda mais desesperada do que eu. Resolvi lutar... comecei o tratamento. Foram dois anos tomando tudo que foi droga... daí minha imunidade começou a subir. Fui fazer novos testes... e o primeiro teste deu negativo! Sem acreditar, fiz o 2o. Deu negativo. Os médicos aqui do hospital resolveram me pagar um teste particular. Deu negativo! Eu não sou mais - ou nunca tinha sido - soropositiva. Estou curada. Com isso, o que eu tenho para te dizer é que tu não percas a tua fé. Não há de ser nada grave, mas mesmo que seja, tenha certeza que isso vai ser curado, porque vai". Chorei muito no colo desta mulher, deste anjo que Deus me enviou quando pedi... O Erik saiu da ressonância e voltamos para o hospital Rio's Dor.

No dia seguinte, 5a. feira, nova anestesia. Os médicos fizeram a biópsia e, na seqüência vieram falar conosco. "Estamos certos de que é osteomielite, já começamos o antibiótico imediatamente... Ele ficará com um acesso venoso para a administração do remédio, por 6 semanas, e depois poderá ir para casa. Mesmo assim, para um diagnóstico definitivo, precisamos aguardar o laudo da biópsia. O que vimos macroscopicamente, confere com osteomielite". Ficamos muito mais confiantes... Os exames de sangue eram compatíveis com osteomielite, os Leucócitos estavam normais, a ressonância voltou com um laudo confirmando essa suspeita... Tudo indicava que era isso. Relaxei.

Passou-se o final de semana com ele sem febre, sem medicação para dor, enfaixado e com um acesso venoso que caiu 2 x e acabou sendo colocado na jugular, por ser do tipo "longo"... Passamos umas noites difíceis, mas parecia que tudo estava bem, sendo tratado e iria melhorar...

Mas aí veio a 3a. feira fatídica... 14/05/2013. O ortopedista entrou no quarto do Rio's Dor enquanto eu almoçava com a bandeja no colo. Veio acompanhado da médica do plantão. Ele não esperou muito para dizer: "O resultado da biópsia chegou e as notícias não são boas. Não é osteomielite, infelizmente. É uma neoplasia. Um tumor maligno. É câncer. Não podemos tratá-lo aqui. Vamos dar alta, mas vocês devem revisar essa lâmina do laboratório... levem para a Dra. Ieracê, ela vai dar um diagnóstico preciso". Nem preciso dizer que meu mundo caiu, desabou, que tive um acesso de incredulidade, choro e desespero. O médico encheu os olhos d'água. A plantonista me abraçou. O hospital ligou para o Edson, e ele voou para o hospital, trazendo a Gilza. Enquanto íamos para casa com o Erik, totalmente transtornados, a Danielle passou no Lab's Dor, pegou a lâmina e levou diretamente nas mãos desta patologista. O laudo do Lab's Dor era bastante inespecífico, definia uma neoplasia de células que pareciam tanto de um linfoma quanto de uma metástase quanto de um Sarcoma de Ewing, o mesmo do meu sobrinho Gabriel...

Perguntei aos médicos como isso poderia ser possível, que um mesmo raio caísse dessa forma sobre a mesma família duas vezes simultâneas, em crianças. Como eu ia falar isso para a minha mãe? Que ela tinha os dois netos com o mesmo tipo de câncer? Ao mesmo tempo?! E que não tinha relação genética ou hereditária? Então era mesmo o cúmulo do azar? Não me pareceu possível, qual estatística iria comprovar isso? O médico também pareceu transtornado, incrédulo. Disse que era quase impossível ser Sarcoma de Ewing, seria um caso para relatar em revista científica internacional, pois estava totalmente fora da faixa etária deste tipo de câncer... Ele acreditava mais num linfoma, mais fácil de tratar.

Tivemos que esperar. 4a, 5a, 6a. O ortopedista falou comigo na 6a, dizendo que a impressão, ao microscópio, era de um linfoma, mas que precisávamos esperar o laudo oficial, só na 2a. feira, 17h, pois havia ido para a imunohistoquímica, em um 3o. laboratório... Foi um final de semana terrivelmente angustiante.

Minha mãe decidiu vir para o Rio. Recém operada do tumor na hipófise, recuperando-se ainda da meningite pós-operatória, sob os efeitos de uma Síndrome de Cushing, com o outro neto em casa, sofrendo a 3a. reincidência do seu próprio tumor... Ela veio. Veio com seu próprio exame de ressonância embaixo do braço, laudo recém pego, para daqui do Rio já poder ligar para o seu médico... o laudo dela também não parecia bom, deixava claro que o tumor não havia sido totalmente retirado na 3a. cirurgia que fizera, no final de janeiro deste ano. Mesmo assim, minha mãe veio, e lhe serei eternamente grata por isso, pois sei o quanto lhe foi difícil... Mãezinha querida.

Fomos juntos para uma consulta com a Dra. Ieracê, em mais uma 3a. feira fatídica: Edson, eu, minha mãe e o pequeno Erik, sem andar, todo enfaixado e amuado. Nunca imaginei conhecer uma patologista tão humana... ela nos atendeu maravilhosamente. Seu laudo era de um Linfoma Linfoblástico B. De todos os tipos, o de mais fácil tratamento. Incrível como somos capazes de comemorar uma osteomielite e depois comemorar um Linfoma! A que tipo de negociação chegamos?!

A essas alturas, estávamos muito angustiados com o tratamento que viria pela frente. Para onde levaríamos o Erik? Voltaríamos para Porto Alegre? Ficaríamos no Rio? Hospital público ou particular? A Dra. Ieracê nos recomendou uma médica do INCA, Dra. Suma Ferman. Saímos de lá e ligamos para ela ainda de dentro do carro. Falamos com sua secretária, tentando marcar uma consulta particular, mas explicando que pretendíamos levá-lo para o INCA. A secretária falou com a médica e retornou a ligação para nós... Passávamos por São Conrado, em frente a uma igrejinha que visitei uma vez também em grande desespero, quando havia acabado de perder um bebê no 3o mês de gestação... Passar por ali sempre me lembra do gosto amargo daquele dia. A secretária me disse que a Dra. Suma não via necessidade de uma consulta particular, uma vez que me atenderia de graça no INCA... Que eu fosse na 5a. feira diretamente para o INCA, levando os documentos dele e todos os exames... Será que teríamos dificuldades para ser atendidos? Tem tanta gente que diz que isso é difícil, que tem fila, que é demorado...

Ainda naquela noite conversamos com um oncologista pediátrico que atendia no Quinta's Dor. Eu queria avaliar se estávamos fazendo a escolha certa, indo para o INCA e optando pelo SUS, quando ainda teríamos plano de saúde disponível por 6 meses... Fiquei convecida. Mesmo ele sendo originalmente do INCA, mesmo ele dizendo que o protocolo de atendimento seria o mesmo, mesmo sabendo que a hotelaria seria muitíssimo melhor, que eu ficaria mais bem acomodada em um quarto particular com um banheiro privativo, pesou na nossa decisão os 60 anos de história do INCA, seus 9 mil casos /ano, uma equipe médica e de enfermagem com uma média de 20 anos de casa... e a gratuidade total do tratamento. Sabia que indo pelo plano de saúde, cedo ou tarde acabaríamos com um advogado, partindo para alguma liminar que nos autorizasse este ou aquele procedimento... Pesou a experiência do INCA e a certeza de que o tratamento seria mantido até o final totalmente gratuito. Pesou que no INCA todos os procedimentos e exames, inclusive um eventual transplante de medula, fosse feito no mesmo hospital, sem transferências... E que o INCA só aceitava tratar um paciente desde o principio, não aceitaria uma transferência no meio de um tratamento particular. Eu poderia sair do INCA a qualquer tepo para um hospital particular, mas não poderia vir de um hospital particular para o INCA. Bom, em qualquer hipótese, era melhor começar pelo INCA.

Na 4a. feira ainda tínhamos que esperar as lâminas que a Dra. Ieracê havia mandado para a imunohistoquímica. Mandei um motoboy buscá-las, para não perdermos mais nenhum dia. Com elas em mãos, partimos para o INCA na 5a. pela manhã, na dúvida de quanto demoraria o atendimento. Eu, Edson, minha mãe, e o nosso pequeno Erik... Chegamos aqui depois de quase 3 horas de trânsito, às 9h30. Prédio antigo, chão de ladrilhos, bancos de madeira ao tempo, dezenas de pessoas sentadas esperando atendimento, uma impressão de miséria total. Fizemos a triagem com atendimento preferencial para crianças de colo. O médico carimbou a nossa ficha e nos mandou para o andar da pediatria. Demos entrada com a ficha e todos os exames, e em menos de meia hora, nos chamaram. A médica que nos atendeu, Dra. Luciana Britto, foi direta e clara: "ele precisa internar imediatamente". Conseguiram o último leito disponível. Demos sorte, muita sorte. Às 13h estávamos internados, com exame de sangue já colhido (abaixo de muito choro do nosso pequenininho - o que deixei por conta do papai Edson suportar, pois eu estava incapaz de lidar com isso naquele momento). Desabei na sala da médica. A enfermeira veio me acolher, me apresentou outra mãe que estava lá... E disse que era para me apresentarem todos os casos de sucesso que eles tem, que tudo iria dar certo. Todos os exames começaram a ser revisados... Fizemos raios X no mesmo dia, e para o dia seguinte ficou marcado no centro cirúrgico a biópsia da medula e a colocação de um cateter.

O choque da internação foi enorme. Não esperávamos já ficar internados com ele no mesmo dia da triagem, foi tudo muito rápido, eficiente. Enfermaria, quarto coletivo, 4 pacientes por quarto, um pijama escrito "INCA" na frente, tanto para mim quanto para ele. Perspectiva de 30-40 dias internada para os exames, início do tratamento e avaliação das reações ao tratamento. Depois mais 5 meses de tratamento venoso, parte dele ambulatorial (vem e volta para casa no mesmo dia). Depois mais 1 ano de quimio oral, em casa. Vi as portas se fechando atrás de mim, uma perspectiva de vida totalmente diferente daquela que havíamos sonhado para o Erik, para nós mesmos. Pensei na Elena, que teria que deixar sem meu carinho diário por um bom tempo. Pensei nos riscos que o Erik corre. Saí com a minha mãe para jantar, enquanto o Edson cuidava dele, já que eu ficaria internada... por meses! Chorei muito, inconformada. Depois que o Edson e a minha mãe foram embora, colegas de quarto me acolheram de forma carinhosa, me levaram para a oração, me deram uma Bíblia, me disseram para crer em Deus, para não duvidar do tratamento, para ter fé e pensamento positivo. Estão todas na mesma situação, vivendo a mesma dor, mas se ajudam, se amparam. "Somos como uma família", me disseram. Meu Deus, o que aconteceu conosco? Larguei trabalho, casa, marido, filha mais velha... Ficou tudo para trás, por meses a fio pela frente! Medo. Medo. Medo. E se...? E se nada funcionasse? E se as notícias ruins não parassem mais? Meus piores pesadelos virando verdade, era isso que eu estava sentindo.

O final de semana se seguiu. De sábado para domingo, o Edson veio para ficar a noite com ele, para que eu voltasse para casa, ficasse com a Elena, arrumasse minhas coisas, arrumasse minha papelada de trabalho, e levasse minha mãe ao aeroporto. Tudo foi difícil. Inclusive ficar longe do Erik. Pensei nele cada segundo fora do hospital. Foi difícil com a Elena, ela estava brava comigo... Mas deixar minha mãe no aeroporto foi a pior parte. Pensei na minha irmã Bia, com o Gabriel, e que eu não poderia ir mais para Porto Alegre para ajudá-la neste momento tão difícil... E que minha mãe teria que ser submetida a mais uma cirurgia e que eu não poderia estar com ela. E que elas não poderiam estar comigo, quando eu mais preciso das duas... Quando a minha mãe entrou para o embarque, tive mais um acesso de choro incontrolável. Fui "acudida" por uma senhora, que veio me consolar. Quando contei "meu filho de um ano está internado com câncer, minha mãe está com um tumor na cabeça e terá que ser operada pela 4a. vez, minha irmã está com o filho na 3a. reincidência de câncer..." a mulher não conseguia acreditar... Acabei dando carona para ela até a Central do Brasil, com muitas promessas dela de rezar por nós. Voltei para o hospital.

Na 2a. feira seguinte ele fez ultrassonografia e na 3a. feira, tomografia. Mais uma 3a. feira fatídica. Aquela em que os médicos entram no quarto e te dão más notícias. A medula havia sido infiltrada. Isso transformava o linfoma em Leucemia Linfóide Aguda, e o pior: dos tipos B e T, bifenotípica. Ele saiu do grupo de risco "padrão" e pulou para o "risco médio"". E ainda aguardamos a citogenética e a fenotipagem completa, para definirmos se não seremos enquadrados em "alto risco". Eles acreditaram que o diagnóstico foi precoce, considerando-se os diagnósticos às vezes bem mais tardios que recebem. O protocolo de tratamento é praticamente o mesmo do linfoma... A boa notícia é que o Sistema Nervoso Central não foi atingido. Pediram que a Elena, de 4 anos, viesse fazer um exame de sangue para observar a compatibilidade da medula óssea, para o caso de um transplante. Vamos observar como ele reage ao tratamento para definir o risco, e também para definir como o tratamento será feito daqui para frente.

Na 4a. feira fomos ao TOC para uma consulta com um ortopedista, que optou por recolocar o gesso. Disse que enquanto ele não inicia a quimio, o tumor segue crescendo e isso pode resultar numa fratura. Voltamos para o nosso quarto e a nutricionista nos aguardava, perguntando se ele havia feito cocô. Não, e também não está comendo nada. Decidiram colocar uma sonda intragástrica, para garantir a alimentação... A sonda foi colocada e feito um raio x para conferir seu posicionamento. Pouco depois, ao manipulá-lo, ela saiu... teve que ser recolocada, novo raio x. O Erik ficou abatido, sem forças nem para chorar. Virava de lado, deprimido.

A assistente social veio aqui, basicamente para me dizer que não temos nenhum direito social. É uma piada. A criança tem direito a ter um dos pais como acompanhante durante todo seu tratamento, mas isso, é claro, obriga um dos pais a parar de trabalhar. Mas o pai acompanhante não tem direito nenhum. Mentira. Tem direito a um salário mínimo chamado "Salário Doença", mas precisa provar que a renda familiar é menor do que 1/4 do salário mínimo percapita. Significa que um pai que ganhe R$ 700,00 mensais e tenha 1 filho e a mulher, ou seja, renda percapita de 1/3, já não é beneficiário do programa...! Não posso acionar o seguro da compra da casa, só se fosse um dos mutuários a ter câncer, o que caracterizaria invalidez permanente.... Sim, eu poderia sacar o FGTS, mas qual empresário tem FGTS?! Ah, claro, posso ter gratuidade para andar de ônibus. Ah tá. Esse país é uma piada. Tenho direito a salário maternidade para me afastar do emprego quando meu filho nasce, mas se ele tem câncer e eu tiver que ficar 2 anos afastada do trabalho para acompanhá-lo, não tenho direito nenhum.

Quando ele dormiu, não suportei. Tive um acesso de choro dos mais doloridos. Impotência, pensei. Não há nada que eu possa fazer. Nenhuma notícia boa, só uma escalada de notícias ruins progressivas! Recebi ajuda espiritual, de voluntários que passaram pela porta do quarto e me viram chorando. Fui me acalmando aos poucos, com a oração silenciosa de um senhor de idade que ouviu meus soluços do corredor.

Decidi ter fé. É uma escolha, afinal. Posso decidir também não ter, e isso seria mais amargo, mais difícil, e seja como for, em nada ajudaria no tratamento do Erik. Essa doença tem cura, ele tem boas chances. Vamos pensar nas chances, na cura, em um futuro feliz. Uma mãe veio me trazer versículos da Bíblia para eu ler. Salmos. O filho dela também tem 2 aninhos, mesma doença. Está no 4o mês de tratamento. Parece bem, está andando, brincando. Quando chegou aqui tinha parado de andar. Fiz amizades sinceras, irmanadas pela mesma dor. Pessoas totalmente diferentes, de níveis sociais, culturais e financeiros muito distantes do meu, dividem o quarto comigo, o mesmo banheiro, a mesma mazela, e ajudam umas às outras.

E agora estamos no dia de hoje. Nesta 5a. feira o Erik acordou mais animado, querendo brincar. Acho que a alimentação pela sonda ajudou, ou talvez o tanto de oração. A corrente de oração, reza, cirurgia espiritual (ele fez uma, ontem), mantras entoados e trabalhos de umbanda, que se formou é incrível. O assistente espiritual voltou hoje, para ver como eu estava. Perguntei qual era a sua religião. "Isso importa?", ele perguntou. "Não, é apenas curiosidade", respondi. "Aqui aprendemos a não impor nenhuma religião, mas a tentar despertar a espiritualidade de cada um. Você disse que é católica, então rezamos um Pai Nosso. Mas se você quiser impor suas mãos sobre o seu filho, com fé, também terá o mesmo efeito", ele disse. Concordei. "Para mim, as religiões são como as línguas", respondi. "Cada um fala aquela em que é mais fluente. Mas Deus fala todas, ele é poliglota". Ele riu, disse que é assim mesmo. "Sou filha de mãe espírita e meu pai é monge zen budista, mas preferi falar a língua católica, acho que sou mais fluente desse jeito", expliquei. "Então tens muita espiritualidade à tua volta", ele considerou. Partimos para uma oração, de mãos dadas com o Erik. Em silêncio rezamos. O Edson havia trazido água benta ontem, benzi meu filho e pedi por ele. Estou aprendendo a falar com Deus.

Muitas outras reflexões surgiram e vou aos poucos relatá-las aqui. Esse primeiro relato é para entenderem aonde estamos e como chegamos aqui. Ainda estou tentando entender o projeto de Deus para nos colocar nesta situação, neste lugar, com essas pessoas. O que posso fazer de útil, com os dons que possuo, para mudar a vida dessa gente que me cerca para melhor? Temos meios, temos contatos, temos caminhos. Há muito a ser feito para combater o câncer e suas mazelas. São mazelas fisicas para o paciente, mas também psicológicas, e atingem toda a família do doente. Está na hora de começarmos a mudar essas histórias.

O Erik vai vencer. E acreditar nisso, ter fé na sua cura, é o que vai me manter viva, e é o que vai salvá-lo.

E é assim que, do medo, surge a coragem.