Tanta coisa vivi nestes últimos meses. Minha vida e a de toda minha filha virou do avesso. A doença do Erik mudou nossas perspectivas, exigiu que assumíssemos novos papéis, deixássemos para trás planos e projetos. Eu deixei de lado meu trabalho, abri mão da direção de projetos que fechamos fora do Rio. O Edson está praticamente morando mais em Porto Alegre do que aqui no Rio, dedicado integralmente ao trabalho. Fundamental para nossa sobrevivência, mas duro para nossa família. Eu sinto falta, as crianças sentem saudade, perguntam por ele o tempo todo. Sei que ele também sofre.
A Elena perdeu muito da minha presença, está sofrendo com 8h de escola/dia. Hoje não queria ir à aula, sente falta da "hora do soninho". Não sei por que cargas d´água a escola aboliu o momento de descanso das crianças com 4-5 anos. Acho cedo para isso, ela fica exausta... dizia hoje, cheia de sono: "Mamãe, eu queria ir na escola fazer uma atividade e voltar para casa, ficar com você...". Morro de pena. Fizemos um festão de aniversário para ela comemorar em grande estilo seus 5 anos. Foi uma festa dela, não do Erik, em torno de quem a vida girou nos últimos meses. Foi algo para tentar dar um pouco mais de normalidade para as nossas vidas, para que comemorássemos o que tem para ser comemorado todos os dias, todos os anos, aconteça o que acontecer. Tínhamos nos prometido não deixar mais passar nenhum aniversário sem comemorar dignamente.
Plantamos uma árvore - um ipê amarelo - para que todo o mês de novembro ele florisse, comemorando os muitos aniversários da Elena daqui para frente. Ela batizou a árvore de "Chuva Dourada". Claro que depois desse plantio eu e o Edson nos abraçamos e choramos juntos, pensando em tudo que isso significa.
Depois fui deixar o Edson numa reunião. Acabei entrando para participar, é parte do projeto que eu ajudei a criar, tenho carinho pelo processo, anseio pelo resultado. Porém, sei que não há como participar pela metade das coisas. Elas estão andando... sem mim. Estamos lá, contratando gente para fazer parte daquilo que eu deveria estar fazendo. E agora já estou me sentindo realmente por fora do andamento do projeto, fico insegura em dar opiniões em processos que não estou acompanhando de perto. Por mais que eu acompanhe à distância, por mais que tente me envolver nas tarefas que podem ser feitas em home office, sei que estou fora. E isso me faz refletir sobre o que será da minha vida profissional, depois disso tudo. O que virá depois, aliás? Quando será o "depois"? É possível fazer planos? Planos que não se frustrem, que não criem mais expectativas que não vou poder cumprir?
Depois dessa reunião, deixei o Edson direto em outra, e depois dessa, ele partiu para São Paulo para mais uma bateria de reuniões por lá. Depois, viaja para Porto Alegre, volta só na 6a. feira, para retornar na 2a. Ele veio sábado para o Rio, passamos dois dias ótimos, mas tão curtos... Como estaríamos lidando com isso, como eu estaria dando conta dos filhos, mesmo que o Erik estivesse saudável, se estivesse acompanhando esse ritmo? Se tivéssemos que nos mudar para Porto Alegre e deixar aqui casa, escola, tratamento no INCA? Será que, de alguma forma, não foi melhor assim?
Voltei para casa com a palavra "ressignificação" na cabeça, muito usada na neolinguística. Sei que preciso ressignificar minha própria vida. Ressignificar significa (segundo a Wikipédia): "atribuir novo significado a acontecimentos através da mudança de sua visão de mundo. O significado de todo acontecimento depende do filtro pelo qual o vemos. Quando mudamos o filtro, mudamos o significado do acontecimento, e a isso se chama ressignificar, ou seja, modificar o filtro pelo qual uma pessoa percebe os acontecimentos a fim de alterar seu significado. Quando o significado se modifica, as respostas e comportamentos da pessoa também se modificam. (...) A ressignificação é um elemento chave para o processo criativo, significando a habilidade de situar o evento comum num filtro útil ou capaz de propiciar prazer. Na teoria da comunicação geral, um sinal somente possui significado em termos de filtros ou contexto no qual se manifesta. Através da ressignificação, podemos aprender a pensar de outro modo sobre as coisas, ver novos pontos de vista ou levar outros fatores em consideração."
Meu dia foi inútil. Pensei várias coisas para esse dia lindo, de sol e calor - ir à praia, ir ao shopping comprar presentes de Natal e travesseiros para os hóspedes que teremos no final de ano, comprar material de obra para reformas em casa, começar uma rotina de caminhada, ler um livro, começar a escrever o filme, trabalhar no roteiro de um longa-metragem que estou gestando há anos, dar conta de uma listinha de tarefas da casa, arrumar o escritório, colocar papeladas em dia, etc etc etc. Mas não fiz nada. Paralisei. Parece que tudo está meio sem sentido. Tive um dia livre, e tudo que consegui fazer foi dormir. Cuidei do Erik no que sobrou da manhã, até 14h, quando a babá chegou. Poderia ter aproveitado a tarde, mas não. Nem marcar meus próprios exames de saúde eu marquei, estou com as requisições aqui, mas não fiz nada. Não saí nem para comprar pão. Dormi uma hora e meia. Apenas reagendei a consulta do Erik... falei com a minha mãe ao telefone... Culpa, sempre me sinto culpada quando meu dia não é "útil". Não sei o porquê, mas perdi a capacidade de simplesmente aproveitar o ócio quando posso dispor dele, nem que seja para que ele me dê fôlego para voltar a ser criativa.
Amanhã temos novamente INCA. Mando a Elena para escola e saio em seguida, com o Erik, para que ele faça exame de sangue e consulta. Se tudo estiver bem com os exames, na 4a. vamos novamente para ele fazer mais um Alspar, uma injeção intramuscular com quimioterapia. O médico deve também agendar a próxima fase do tratamento, que deve ser bem cansativa, com idas quase que diárias ao INCA. Daí que um dia de intervalo deveria ser tomado como um dia de folga, também por mim, mas não consigo relaxar e nem produzir.
Falei para um amigo hoje à tarde: eu me sinto como se estivesse correndo uma maratona - uma maratona que não sei se vou vencer ou não. Estou agora nos últimos quilômetros, falta pouco e já vislumbro a linha de chegada. Podem haver obstáculos, não seriam surpresa para os médicos, sempre sou alertada disso. Firmemente, mantenho minha fé na vitória. Mas minhas pernas estão pesando uma tonelada cada uma e todo passo é um sacrifício. E mesmo que haja dias como o de hoje - intervalos - não consigo mudar o foco, não consigo sair de dentro do problema, não consigo "me distrair". Nem mesmo o próprio Erik consegue me distrair, ele que é um serzinho iluminado e nem pensa na própria batalha. Ele simplesmente vive cada dia, é alegre, extasiante, gosta de cantar e dançar, nem andar anda: ele corre. Puxa meu braço insistentemente, "Mamãe, vem bincá", enquanto eu zapeio pelo Facebook como se estivesse fazendo algo de importante que não pudesse ser interrompido. Culpa.
Ainda estou longe da "ressignificação". Talvez isso só possa vir depois, mesmo. Depois da maratona, da linha de chegada. Mas e se a linha de chegada for reposicionada mais à frente, tão logo eu a cruze? Uma amiga está passando por isso, exatamente. Depois de dado o tratamento por encerrado, comemorar a cura do filho, não mais do que duas semanas depois, ele voltou ao hospital com forte dor de cabeça, vômitos, apatia. A doença voltou. O tratamento recomeçou, estaca zero. E agora está definido que fará transplante de medula, no caso dele, autólogo (dele para ele mesmo, o que no caso dele, um Linfoma de Burkitt, se aplica, no do Erik não seria possível, precisaríamos de um doador).
Estou enfrentando mais uma crise de uma doença autoimune. Sofro de "esclerodermia de placas", uma doença reumato-dermatológica, em que os anticorpos resolvem atacar a pele do sujeito e queimá-la. Parecem queimaduras, várias manchas na barriga e na perna esquerda. Tive uma primeira crise dessas há 20 anos, e neste meio tempo até achei que tinha curado, mas a cada cirurgia que eu fiz as coisas se agravaram - primeiro foi uma lipoaspiração, há cerca de 17 anos, depois foram várias cirurgias de varizes, depois duas cesáreas. A cada uma, novas manchas surgiram. Neste ano, porém, a crise se intensificou, as manchas ficaram mais espessas, mais duras, a pele retesada.
Fui a um reumatologista na última 6a. feira, pela primeira vez. Já tinha ido a 3 ou 4 dermatologistas diferentes, que me passaram cremes e pomadas que de nada adiantaram; e também fui a um clínico geral ortomolecular e especialista em medicina chinesa, que me encheu de vitaminas e homeopatias, que não consigo tomar, tantas vezes ao dia elas precisam ser repetidas... A voz comum é que não há cura, ninguém sabe o que dispara isso, ninguém sabe como curar. O risco é que ela a esclerodermia deixe de ser "de placas" e passe a ser "sistêmica", atacando também órgãos vitais, como os rins ou o pulmão. Este último médico me falou das terapias disponíveis, vamos começar com uma mais fraca (não comprei o remédio, deveria ter comprado ao menos isso hoje!) e fazer outros exames para ver se a minha doença se limita mesmo à pele. Na avaliação dele, meu score é 2, numa escala que acho que vai até 5 (foi o que espiei no computador dele). Se necessário, podemos avançar para outras terapias mais pesadas, na verdade alguns remédios que fazem parte da quimioterapia que o Erik usa, como a ciclofosfamida. Essa seria a única medicação capaz de fazer regredirem as manchas já existentes, mas ela tem tantos efeitos colaterais que não é uma boa indicação agora. Ela me exporia à infecções, por exemplo. E o pobre do Erik toma essa droga, entre tantas outras!
Como último recurso - se a esclerodermia avançar para órgãos vitais e o risco da doença for maior que o do tratamento - poderíamos inclusive apelar para um transplante de medula óssea. O risco de vida de um transplante de medula óssea em adulto é maior do que em crianças, e em crianças é em torno de 50%. Então... esse é mesmo o último recurso, certo?
Engraçado, pois essa minha doença é o oposto da leucemia que atinge o Erik, é uma leucemia ao contrário: em vez de imunodepressora, meu sistema imunológico está hiperativo, malucão, atacando o próprio corpo, que deveria defender de agentes externos. Meus anticorpos veem a minha pele como inimiga. "É como se o exército brasileiro resolvesse atacar São Paulo e matasse os paulistas, quando deveria defende-los", disse o médico. "Entendi, é como se fosse um golpe de estado", repliquei. "Isso mesmo!". Quer dizer, meus exércitos estão me atacando, me punindo. Deve ser a tal da culpa, afinal. Mandem me prender, eu sou culpada, assumo todas as culpas! Podem bater! Schlap, schlap, schlap, estalem os chicotes do autoflagelo!
Psicólogos de plantão, prato cheio procês. Podem as doenças auto imunes serem psicossomáticas? Devo estar fazendo uma auto expiação da minha culpa com chibatadas providenciadas pelos meus anticorpos estressados e cheios de adrenalina? Beleza, mas agora que já sei que isso é possível, é ao menos uma explicação plausível, como fazer eles pararem com isso?! Gostaria de dizer-lhes: "Ei, caras, isso não vai adiantar de nada, parem de atacar! O inimigo não é minha pele, nem meu pulmão, pelo amor de Deus! O inimigo está lá fora, e não há nada que se possa fazer contra ele além do que já está sendo feito! Estamos fazendo tudo que pode ser feito, não há porque eu me culpar! Parem com essa guerra estúpida e aproveitem os dias livres para... caminhar, ler um livro, ver tv ou simplesmente dormir! Não há nada de mal nisso! Enjoy it! Chega disso, já perdeu a graça! Estou ficando toda manchada!"
Teria muito mais coisa para contar. Detalhes da festa da Elena, da presença da minha irmãzinha Bia aqui, dos sonhos dela com nosso querido Gabriel, que partiu. Do nosso lamento pela sua ausência, pelo choque que isso causa. Poderia também falar dos meus sonhos, como o que tive essa semana: sonhei que dizia para uma mãe com o filho muito doente que a vida era dividida em pastas, e em uma delas arquivávamos as coisas chamadas "impossíveis", mas que sempre podíamos mudar o nome da pasta para "impossível AINDA", e manter essas pastas sempre abertas. O mais engraçado - não, não era um sonho engraçado - é que eu tinha que me esforçar para dizer tudo isso em inglês e buscava as palavras no fundo da memória: pasta é folder, impossible, almost impossible ou impossible yet? Doideira.
Poderia ainda falar da nossa ida ao shopping Village Mall e da sensação estranhíssima, de total inadequação, de que vivo em mundos diametralmente opostos e que me parece simplesmente absurdo comprar óculos de sol que custem um salário mínimo, quando meus colegas de quarto no INCA não dispõe disso para viver por um mês inteiro, sustentando vários filhos... Ou seja, me sinto também culpada pelo que posso comprar, num país em que os abismos sociais são literalmente, abissais. Tenho culpa por tudo que os outros não têm? Tenho consciência, e ao ter consciência sou automaticamente culpada. Essa é a lógica cristã. Nunca mais ir ao shopping sem sentir culpa, sem achar tudo à minha volta permeado de absurdo. Esse é o meu preço? Desse jeito, não vou mais conseguir ser feliz...! Tudo à minha volta me dói, me faz sentir impotente. Abriram-se as comportas da consciência, toda inocência foi-se ralo abaixo.
Fiz amigos no INCA, amigos e amigas, que talvez nunca encontrasse em outras situações. De repente, estamos ali, como iguais, apesar das diferenças sociais e culturais, e descubro o valor de amizades verdadeiras, dedicadas. As diferenças não são só sociais e culturais. São até raciais, para aumentar a minha vergonha da nossa sociedade (e a minha culpa). Não é chocante que uma amiga querida do INCA, que eu convidei para a festa da Elena, ao trazer a filhinha linda, diga, vendo-a brincar feliz da vida e cheia de inocência entre os amigos da escola da Elena, que ela parecia um feijãozinho no meio de um monte de arroz? De fato, era a única negra. Linda, diga-se de passagem! E isso me parece simplesmente inaceitável numa cidade em que metade da população é negra. Minha filha não tem nenhum colega negro na sua sala de aula de escola particular. Sei que não houve um critério racial na seleção dos alunos, o critério foi econômico. Isso é menos trágico?