Beatriz, com Elena, minha filha, e meu sobrinho Gabriel.
Minha bisavó se chamava Beatriz. Ela viveu em Maceió, Alagoas, no início do século passado... Não a conheci. Mas a tenho muito, muito presente em mim, pelas histórias contadas pela minha vó Eronides... Ela impressionava minha tia Anne ainda menina, quando ela soltava seus cabelos para dormir, no quarto que dividiam nas férias passadas em Pelotas, Rio Grande do Sul. Ela que me conta: "A vó Beatriz sentava na beira da cama de costas para mim e escovava lentamente seus longos negros cabelos de índia - como esclarecia minha mãe. O fazia com cuidado e por muito tempo. Depois, com a mão esquerda segurava-o como se quizesse fazer com ele um rabo de cavalo mais perto da nuca e com o dedo indicador da mão direita o enrolava no comprimento rapidamente. Com muita agilidade fazia o que chamava de cocó, enrolando tudo em círculos que se sobrepunham, escondendo a ponta dos fios embaixo do coque. E, com um único longo grampo prendia tudo e assim ficava o seu penteado perfeito durante todo o dia".
Esta minha bisavó viveu bastante, e teve 23 filhos. Essa sempre foi uma conta impressionante para mim, pois para ter 23 filhos - nenhum gêmeo, todos nascidos de parto natural, fora os eventuais abortos - ela teve que engravidar uma vez por ano, dos 16, quando casou, aos quase 50, quando teve o último. Passou a vida fértil dela toda grávida! Mal terminava de amamentar um e já estava grávida do próximo... "A verdade é que muito raramente tinha sua menstruação pois ou estava gestante ou amamentando. Este período ela denominava "estar doente": ficava de repouso, não comia frutas cítricas, a comida não era temperada, cebola e alho eram evitados, não lavava os cabelos, não usava roupa clara...", conta tia Anne. Pois é. Destes 23 filhos, 20 morreram na infância, vítimas de doenças diversas, sem cura na primeira década de 1900. Morriam de disenteria, sarampo, catapora, caxumba, gripe, pneumonia, infecções das mais diversas. A minha avó Eronides me contava que não lembrava da mãe que não fosse grávida, e que não lembrava de ano que não tivesse ao menos um nascimento e uma morte. Era assim na família dela, mas também em toda a comunidade. Sua "diversão" era sentar-se à janela de casa, para ver as procissões de caixõezinhos brancos, passando.
Sobraram apenas 3 filhos, dentre eles a minha vó, mulher forte, "marrenta", como se diz aqui no Rio. Ela mesma perdeu 5 filhos, 4 filhos do primeiro casamento e um adotado, todos quando ainda vivia no nordeste. Dos filhos que teve no sul, do segundo casamento, pensou em dar o nome de Beatriz à mais nova. De novo é tia Anne que me conta: "Sabes que tua tia Nida deveria ter sido batizada com o nome de Ana Beatriz (somando o nome das suas duas avós) e... teu avô foi contra, pois seria uma carga muito pesada para a caçula da família?" Ao fim da própria vida, minha avó Eronides teve Alzheimer, e algumas das suas alucinações eram flashbacks claros dos filhos perdidos...
Pois dizem que quando eu era criança tive um período que dei para ter amigas invisíveis e "encarnar" personalidades. Uma das preferidas era "Beatriz". Eu enchia a boca de ar e dizia que quem estava ali era a Beatriz, o que deixava boquiaberta a minha tia Helena, espírita.
Quando minha mãe engravidou pela 3a. vez, já no seu segundo casamento, pensou em vários nomes para a filha que ia nascer. Fez uma lista. Mas, na hora que viu minha irmã pequeninha, em seu colo, deixou todas as opções de lado e decidiu, sem pestanejar, que o nome dela seria Beatriz, deixando surpreso meu padrasto, Chico.
Não me pareceu acaso, portanto, que minha sogra também se chamasse Beatriz. Acho que tenho um carma com esse nome, com essa força, com essas histórias. Minha sogra faleceu há 2 anos, no mesmo mês do nascimento do Erik. A vida é isso, esse ciclo infinito de nascimento e morte, dia e noite, luz e sombra, força e fraqueza, saúde e doença. "A vida é dualidade", disse-me hoje meu pai-monge. Uma moeda de duas faces, e a gente só consegue ver uma face de cada vez, portanto precisa viver intensamente a face que nos está sendo mostrada. Mas, para não enlouquecer, é preciso sempre lembrar-se que a outra face está lá, do outro lado, e que a veremos novamente em seguida...
Por isso tudo, este post é uma carta à Beatriz, neste momento, à minha Beatriz viva, minha irmãzinha. E é uma carta de Mãe para Mãe. De uma Mãe com um filho doente para uma Mãe que acaba de perder o seu. Uma carta de irmã para irmã. Uma carta para Beatriz.
Bia,
Nesta semana perdestes teu filho. Vi tua "implosão" de sentimento, mana, tua dignidade diante do sofrimento indizível, vi isso e nada pude fazer para te consolar. Todos a tua volta queriam te consolar dessa dor sem consolo, e tudo que senti e que certamente todos sentiram foi uma impotência imensa...
Falando sobre nomes, sua força e significado, queria te lembrar de quando escolhestes para o teu menino o nome de Gabriel. Tinhas apenas 18 anos quando ele nasceu, eras uma menina, ainda inocente e assustada, um tanto revoltada com esse viés do destino, e naquela ocasião, no teu quarto, te lembrei que Maria também tinha tido um filho assim jovem, e que Gabriel era o nome do anjo que anunciou sua missão na vida. Lembras disso? Há não muito tempo atrás, escrevi um post sobre o Sim de Maria, pois entendi que todas as mães, cedo ou tarde, acabam por dizer esse "Sim", um sim que carrega sacrifício e libertação, que implica em aceitar uma missão.
É impressionante como o tempo acabou provando ser forte esta missão que aceitastes. Eu lembro de como foi difícil para ti. Tinhas tantos planos! Cursar medicina, viver os teus 20 anos, namorar, viajar, curtir a noite, os amigos... A tua missão de mãe, sem o apoio de um pai com quem compartilhar o dia a dia, foi das mais árduas. E tu a tomastes como tua, sem deixar que ninguém interferisse, sem dividi-la. Quase que rosnavas quando alguém queria te ajudar, dividir contigo. Era coisa tua, uma questão de honra, te sentias constrangida e orgulhosa, não deixavas que chegássemos muito perto... Tu cuidastes, tu educastes, tu amastes. Amastes aquele menininho sem limites. Foram 12 anos de vida dedicada às necessidades desta criança.
No mesmo ano em que o Gabi nasceu, o teu pai se foi... E foi também uma perda enorme para ti, pois eu sei que ele era teu colo... e como esse colo te fez falta. Enfrentastes tudo, todos, e fostes Mãe com letra maiúscula. A infância do Gabi teve seus desafios desde o princípio. Ele era um menino voluntarioso, dono de uma energia inesgotável, que muitas e muitas vezes enfrentou suas bronquites, crises de vômito, e outras situações resultado da peraltice: lembra da vez que ele saltou o muro da casa do avô e caiu de barriga sobre as ponteiras da grade? Ui. Não gosto nem de lembrar. Estava sempre aprontando! Inteligente, vivaz, questionador. Um desafio grande de educação, e tu lá, sem te deixar abalar. Ou se te abalavas, guardavas isso para ti. Quantas vezes ouvi teu suspiro contido, tu que sempre fostes de poucas palavras...? Quantos programas perdestes, quantas vezes tivestes que adiar teus próprios planos? Que peso teve este teu Sim, minha irmã...!
E a tua paciência com o pai do Gabi, o Rafael. Faz pouco tempo que eu o conheci, pois faz pouco tempo que ele se rendeu e se aproximou... E sei o quanto ele está mudado, o quanto assumiu a responsabilidade pelo filho, ainda que isso tenha sido recente... Poderias tê-lo afastado, poderias tê-lo processado, até, exigido direitos, essas coisas. Todos - inclusive eu - te recomendaram isso. Dissestes que não. Fostes simplesmente paciente e incansável, acolhendo inclusive os filhos dele, com outras mulheres, dentro da tua casa, para que não deixassem de conviver entre si. Promovestes a amizade linda entre o Gabi e o irmão mais velho, Matheus. Tua serenidade e dedicação não teve limites. Destes tudo de ti, tudo. Sabe-se lá quanto tudo isso te custou...!
Quando o Gabi adoeceu pela primeira vez - eu me lembro exatamente do momento em que recebi esta notícia - fiquei pasma em como as provas não paravam de se apresentar para ti. "Que fardo, meu Deus!", foi o que pensei... Tu fostes em frente. Estavas prestes a terminar a faculdade, mas adiastes teus planos mais uma vez para estar ao lado dele, em todos, todos os momentos. Foram três anos, desde o diagnóstico, até o seu falecimento, na última 6a. feira, dia 16/08/2013. Três anos de sofrimento, é verdade, mas também três anos de muito amadurecimento.
Tu te tornastes uma Mulher. Uma Beatriz, digna daquela minha bisavó, que nem é tua bisavó (somos filhas de pais diferentes e essa Beatriz de que falo é minha bisavó por parte de pai), mas que é impossível não pensar na semelhança. Ela viveu isso - de perder um filho - 20 vezes. Vinte vezes! Vinte doenças, vinte derrotas, vinte enterros! Naquela época isso era tão comum que imagino que as pessoas até encarassem diferente... Mas, ao mesmo tempo, sabemos que a dor de perder um filho é incomensurável, insuportável, inesquecível, insuperável, em todos os tempos, em todas as culturas, em todas as raças, em toda a história. A dor de Maria é mitológica: encarna esse sofrimento para que tenhamos um pouco mais de compreensão sobre aceitar nosso papel no mundo. Um papel de generosidade, de doação do corpo, do tempo, da juventude, da própria vida, para um filho. Tu fizestes isso, mana, sem titubear. Vivestes este mito pessoalmente. Não és a única, pequena, mas fizestes a tua história magistralmente.
O Gabriel é - mitologicamente e realisticamente falando - o teu anjo da anunciação particular. Ele veio, não tenho dúvidas, para anunciar a tua missão. Cumpristes uma parte dela, cuidando dele, aproximando-o do pai, amadurecendo e florescendo como mulher, mas a tua missão não acabou aqui, com a partida dele. Tu sabes disso. Na verdade, eu arriscaria dizer que tudo, até agora, foi só a tua preparação. A tua verdadeira missão, minha irmã, começa AGORA. Tens muita coisa, muita vida ainda pela frente, muita história ainda para escrever. Muitas batalhas para lutar. Não pense que será fácil, só porque essa batalha terminou; é agora que começa a tarefa de estender a tua força, essa musculatura moral que adquiristes, às batalhas de tantas outras mulheres, mundo afora. A começar por mim, que me inspiro em ti, e estou vivendo também minha própria batalha. Saibas que te tenho como exemplo, tu, minha irmãzinha mais nova, minha bonequinha. Inspirada em ti, não vou desistir, nem por um segundo, não vou esmorecer, não vou perder a fé nem a esperança. Nosso Erik vai vencer a doença. Vai resistir. E vai fazê-lo com a lembrança viva do Gabi dentro de nós. Choro, agora, ao escrever isso, pois penso que temos um anjo no céu para nos ajudar a vencer... O Gabi deve estar lá, montado num skate fazendo manobras radicais nas nuvens, questionando Deus de tudo, intrigado com as questões de verdade e mentira, e certamente nos mandando força para continuarmos em frente aqui em baixo.
Voa, Bia. Voa alto. Agora é tua hora, tua vez, e eu sei que, sendo a tua vez, ainda vais te dedicar a trabalhar com oncologia pediátrica, na tua área que é a nutrição (nutrir, alimentar, curar). Vais trabalhar neste meio tão difícil e doloroso, mas que se contém perdas, às vezes, também contém a chance da cura, contém a vida. Saibas que não perdestes o Gabriel; ganhastes o Gabriel e um sentido para a tua vida. Muita gente, mana, muita gente não tem sentido para a sua vida. Isso é uma dádiva, e tu a tens. O Gabriel te deu isso. É uma vitória, não um fracasso. Ele estará para sempre em nós.
Saiba que é teu filhote lindo, anjo Gabriel, este teu guia, que te chama para esse vôo, para encarar a vida e toda a sua dualidade, sem deixar de sorrir, sem deixar de chorar quando preciso, mas sem se deixar abater. Resiliente, capaz de se levantar a cada queda. Ele não te escolheu à toa. É porque és muito, muito especial. Lamenta, sim, quando tiveres que lamentar, toma teu fôlego, que mereces, tira as tuas férias, te energiza, te recupera. E depois vai, irmã, vai abraçar a tua Vida. Acredito em ti.
Conta comigo, sempre. E me empresta essa tua força, que vou precisar!
Tua irmã e admiradora,
Valéria
Estou eu aqui emocionada lendo palavras tão lindas...
ResponderExcluirValéria e Beatriz, vc´s são exemplo de tudo para mim, quando penso em reclamar penso em vc´s, mulheres lindas que eu tenho uma admiração gigante!!!
Força para vc´s, rezo todos os dias por vc´s, sempre contem comigo
Beijinhos
LINDO!!!!
ResponderExcluirEMOCIONANTE!!!
PERFEITO!!!!
Uma história verdadeiramente LINDA! Digna de um livro. Parabéns pela iniciativa, mas te desejo muita força nesta tua jornada.
ResponderExcluirChorei muito ao ler a história de vcs...impossível não se emocionar, principalmente qdo se é mãe! Mas creio que Deus há de dar a vitória na vida o Erik e muita força para a sua Beatriz...muita luz pra vcs! Eu estarei sempre orando por todos. Um bj. Glaucia Vic
ResponderExcluirCheguei ao seu blog através do Facebook de uma amiga e há algum tempo acompanho a sua luta com o pequeno Erik. Tentei escrever alguma coisa mas nada que eu fale nesse momento vai conseguir transmitir o que eu realmente estou sentindo. Sou mãe de 2 adolescentes e tenho 2 irmãs já adultas que amo demais. Desejo que a Beatriz tenha FÉ na vida, que ela acredite que todos nós temos uma missão e a dela talvez esteja apenas começando. Sou voluntária do IncaVoluntário e um dia talvez a encontre para lhe dar um abraço. Marcia
ResponderExcluirSalvei o teu blog no meu IPhone e abro diariamente
ResponderExcluirFico muito triste com tudo e ao mesmo tempo tento enxergar a vida sem tanta ansiedade e pressão ...
Desejo a vocês de coração que o Erik se restabeleça , assim como vc, Helena e
O Edison -
Com
Muito carinho espero que sua irma tenha forca e fé nesta hora
Um beijo muito carinhoso de quem nao te conhece mas sente algo especial por esta família
Bj
Daniela
Oi Valéria. Tô aqui morrendo de chorar com o blog. Fiquei sem computador nas últimas semanas, vendo apenas os e mails pelo celular. Quase não entrei no face. Mas o Jean me avisou sobre seu sobrinho. Meus sentimentos, minha linda. Que barra tudo isso. Nós nos ausentamos um pouco, mas nunca deixamos de orar pelo Erik. Sempre temos vocês na nossa mente. Mas passamos por uma fase muito ruim, com problemas e muito estresse. Nada comparado ao seu problema, que ao meu ver, é o pior do mundo, mas de qualquer forma, nos desgastamos muito. Estávamos com a energia horrível e não queríamos passar isso pra vocês. De verdade não seríamos boas companhias. E vocês merecem o melhor de nós. Estou resolvendo tudo e acredito que semana que vem estarei melhor. Desculpe-nos pela ausência. Agora sentei pra ler o blog e antes mesmo de ler tudo, vim te escrever. Continuo acreditando e confiando que Deus vai providenciar a cura do Erik. Eu creio! Tenho fé! Está nas minhas orações. Semana que vem vou ver vocês, sem falta. Força, querida. Beijos pra ti, Edson, Elena e nosso guerreiro Erik. Amamos muito vocês.
ResponderExcluirtentando escrever...
ResponderExcluirTenho vindo pouco por aqui, Valéria. Confesso que também estando dolorida por motivos tão menores - mas o que seria um "motivo menor", não é?! Cada um chora pelo seu "um". Assim diz a minha médica - visitar o seu blog me traz mais forças do que talvez eu leve à você. Muito sensível a sua Carta à Beatriz, querida! Fiquei lendo o post, e a imagem da foto (Beatriz, Elena e Gabriel) acompanhavam, em minha mente, a leitura. Como é a vida! Naquele momento, com um registro tão singelo! Talvez vocês nem imaginassem que um dia teriam um outro filho e, se já pensavam nisso, com certeza não sabiam que seria um guerreiro. Pelo não assim, tão pequenininho. No mesmo registro de imagem o olhar de Beatriz, que se dividia em amor pela sobrinha pequetita e em admiração pelo acolhimento que Elena recebia de Gabriel. Agora uma anjo!
ResponderExcluir